O Boletim #3 está no mundo!

Que tal conferir um pouco mais das temáticas abordadas?

No primeiro texto “200 anos de Independência e o Brasil na encruzilhada: entre a democracia com Lula e o golpe com Bolsonaro” (p. 4-11), o cientista político e professor da UFRJ Josué Medeiros analisa a sobreposição de caminhos contraditórios no cenário brasileiro após seus 200 anos de Independência: ao mesmo tempo em que é explicitamente nítido para nossa comunidade que a escolha por uma determinada via no pleito presidencial de 2022 nos levará ou a uma possível democracia ou ao indiscutível golpe autoritário, não fazemos ideia do que será o nosso futuro.

Confira o texto abaixo!

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200 anos de Independência e o Brasil na encruzilhada: entre a democracia com Lula e o golpe com Bolsonaro
Josué Medeiros [1]

O Brasil está prestes a completar 200 anos como nação formalmente independente em mais uma situação de encruzilhada histórica. Não é a única nesses dois séculos – ou mesmo no período colonial – mas adquire um caráter inédito e especial: nunca tivemos uma sociedade civil tão pujante e criativa, com uma diversidade de ativismos e associativismos riquíssima, o que nos permite sonhar e projetar um país realmente independente para os próximos dois séculos; e, ao mesmo tempo, jamais as forças do autoritarismo estiveram tão ativadas em nossa coletividade, com disposição de transformar definitivamente a violência política no método de resolução dos conflitos políticos e sociais que atravessam a nação.

Estamos, portanto, em um tempo histórico de sobreposição de caminhos contraditórios: ao mesmo tempo em que é explicitamente nítido para nossa comunidade que a escolha por uma determinada via no pleito presidencial de 2022 nos levará ou a uma possível democracia ou ao indiscutível golpe autoritário, não fazemos ideia do que será o nosso futuro.

Essa situação paradoxal de certeza no primeiro passo mas de absoluta indefinição de como caminhar se expressa na discrepância entre a convulsão social crescente e a estabilidade do quadro eleitoral presidencial. Este de fato será definido em 02 de outubro; aquela não tem data para ser resolvida.

Estabilidade no Cenário Eleitoral

Faltando dois meses para as eleições presidenciais, o cenário é de estabilidade desde que o ex-presidente Lula recuperou os direitos políticos em 08 de março de 2021. O petista vem liderando as pesquisas sempre com um patamar acima de 40%. No primeiro levantamento feito pelo instituto DataFolha já com Lula em plenas condições de concorrer, em 12 de maio de 2021, ele alcançou 41% das intenções de voto. No mesmo sentido, o atual presidente, Jair Bolsonaro, vem desde então se mantendo em segundo lugar, confortável quando olha para os demais concorrentes e tenso quando ele vislumbra a dianteira de Lula. Na mesma pesquisa do DataFolha ele apareceu com 23% da preferência do eleitorado.

De lá para cá, ambos vêm crescendo, confirmando a polarização e funcionando como verdadeiras esponjas de voto, que sugam os eleitores indecisos e aqueles que estão com outros candidatos. No DataFolha mais recente, de 28 de julho de 2022 – provavelmente o último antes do começo oficial da campanha – Lula marcou 47% e Bolsonaro 29%.

A estabilidade da polarização pode ser verificada também nas intenções de voto da chamada “terceira via”. Trata-se do grupo de candidatos à esquerda e à direita que se propõe a quebrar a polarização. Esses postulantes à presidência costumam receber uma atenção das mídias empresariais e mesmo alternativas maior do que suas intenções de voto, o que na pré-campanha se justifica pela possibilidade de ocorrerem novidades no processo eleitoral.

O perfil desses políticos varia em dois tipos. Por um lado, quadros experimentados do sistema político, de partidos tradicionais. São eles o ex-ministro Ciro Gomes, do PDT; a senadora Simone Tebet, do MDB; o ex-ministro da Saúde Luis Carlos Mandetta, do União Brasil; e também os ex-governadores de São Paulo, João Dória, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, embora ambos buscassem se apresentar como renovação política; de outro, os outsiders, figuras com alguma popularidade externa ao sistema político e que buscam encarnar um sentimento de renovação diante da rejeição mais ou menos aguda do eleitorado à política. São os casos do apresentador Luciano Huck, do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro e do deputado federal André Janones, chamado de fenômeno das redes sociais.

O fato é que os dois perfis fracassaram em quebrar a polarização (o que, aliás, não é bem uma novidade nas eleições presidenciais brasileiras, como já registramos em outro texto[1]). Em maio de 2021, a soma das intenções de voto dos candidatos da chamada “terceira via” era de 22%. Em julho de 2022, esse total foi reduzido à metade, com 11%. De lá para cá, a grande maioria dos “terceriaviers” desistiu: Huck, Mandetta, Leite, Dória, Moro. Tudo indica que o próximo será Janones, que deve anunciar apoio ao ex-presidente Lula. O gráfico 1 mostra a evolução das intenções de voto de Lula, Bolsonaro e da soma da terceira via

Gráfico 1 – Elaboração própria.

Identificar a estabilidade é condição necessária, porém não é suficiente para compreender as eleições de 2022. O esvaziamento da terceira via já era esperado diante da polarização. Mas cumpre ainda tentar entender as tendências dos votos de Lula e Bolsonaro.

O crescimento do atual presidente nas pesquisas o levou para o patamar de 1/3 dos votos, o que em tese o garante no segundo turno. Bolsonaro, contudo, tem dois problemas graves para enfrentar do ponto de vista eleitoral. Primeiro, o fato de que o ex-presidente Lula ganhou, nesse período, a mesma quantidade de intenções de voto. Ambos cresceram cada um 6%, o que dá 12% no total. Trata-se da mesma quantidade de eleitores perdidos pelos candidatos da terceira via. Fica evidente, enfim, que o eleitorado vem abandonando os “terceiraviers” em direção aos líderes. E disso decorre o segundo grave problema para Bolsonaro: a possibilidade cada vez mais provável da eleição terminar no primeiro turno.

Em maio de 2021, Lula e Bolsonaro somavam juntos 64% das intenções de voto. Em julho de 2022, esse total subiu para 76%. Nas duas eleições presidenciais resolvidas no primeiro turno – em 1994 e 1998 – a soma dos votos de Fernando Henrique Cardoso, vencedor, e Lula foi de 81% e 85% respectivamente, Estamos muito próximos desse cenário.

A maioria dos analistas e lideranças políticas projeta um crescimento de Bolsonaro uma vez que os efeitos da PEC do Desespero impactem a vida da população. Como é sabido, o governo abriu o cofre para beneficiar setores da população, especialmente os mais pobres, com o Auxílio Brasil turbinado e, com isso, recuperar o terreno perdido pelo atual presidente para Lula e, assim, garantir a realização do segundo turno.

Novamente, dois problemas se apresentam para Bolsonaro. O primeiro está na relativização dos efeitos econômicos dos benefícios. O aumento de R$ 200,00 reais não é suficiente para recuperar o poder de compra da população mais pobre diante da inflação recorde. Ademais, o governo já demonstrou incapacidade de gestão para reduzir a fila de espera do programa de transferência, o que diminui o impacto positivo das medidas. Por fim, mas não menos importante, há a própria dinâmica da campanha eleitoral, na qual os beneficiários serão lembrados diariamente que a benesse tem prazo de validade curso e será encerrada em dezembro. Bolsonaro não inspira confiança em promover uma melhora de vida mais sustentável para os mais pobres e é justamente esse o ponto forte de Lula.

O segundo problema é eminentemente político: o radicalismo autoritário de Bolsonaro. Quanto mais ele vê a possibilidade de derrota, mais aumenta a intensidade das ameaças golpistas e a convocação da sua base mais fiel para um enfrentamento contra o resultado eleitoral. E quanto mais ele faz isso, mais ele alimenta dois sentimentos que favorecem sua derrota: por um lado ele cria nos 11% de eleitores que ainda restam na terceira via um sentimento de que é melhor fazer voto útil para Lula e encerrar logo a disputa no primeiro turno, o que diminui as chances de um golpe. Por outro lado, ele reforça entre os mais pobres uma sensação de que será derrotado – seus arroubos aparecem nas pesquisas qualitativas como choro de perdedor – o que leva esse segmento a fidelizar seu voto em Lula.

O “Centrão” que abraçou Bolsonaro sabe disso e tem falhado em organizar uma estratégia de campanha diferente, mais moderada. A estratégia passa fundamentalmente pelo convencimento do candidato. A última palavra é sempre de quem estará nas urnas. E Bolsonaro vem se mostrando cada vez mais convicto da necessidade de radicalizar.

Instabilidade social e institucional

A vitória de Bolsonaro em 2018 é resultado direto da instabilidade no tecido social e no arranjo institucional brasileiro que já dura uma década. Não é o espaço aqui para recuperar toda a cronologia de eventos recentes da política brasileira. É preciso apenas registrar que o país vive uma profunda crise política e social provocada pelo não reconhecimento das eleições de 2014 por parte de Aécio Neves e do PSDB e pela inviabilização do governo Dilma por parte de Eduardo Cunha, do PMDB. E ressaltar que o governo Dilma enfrentou esses dois oponentes de modo equivocado quando optou pelo ajuste fiscal em seu segundo mandato, rompendo sua promessa de campanha por mais direitos e desorganizando a base social progressista.

O golpe parlamentar de 2016 e o governo Temer radicalizaram essa instabilidade, com o Teto de Gastos, a Reforma Trabalhista, os escândalos de corrupção envolvendo o presidente e a militarização dos conflitos políticos e sociais, cuja expressão máxima foi a intervenção militar no Rio de Janeiro em 2018.

O ano de 2018 é atravessado por quatro eventos chaves que levam a instabilidade social e política a um novo patamar: o brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco do PSOL, em março; a injusta e ilegal prisão de Lula em abril; a greve dos caminhoneiros em junho e a vitória de Bolsonaro em outubro.

A vitória de Bolsonaro abriu a possibilidade para a resolução da instabilidade social e institucional pela via autoritária, com a destruição definitiva do combalido arranjo constitucional de 1988 e a edificação de uma nova arquitetura legal e política autoritária.

Bolsonaro operou nesta direção desde o começo do seu governo, sem jamais esconder tal objetivo. Tudo que ele fez durante a pandemia da Covid 19 – enfrentamento com o Congresso, com o Judiciário, com governadores e prefeitos, com o meio ambiente e com a ciência – já estava presente em seu primeiro ano de mandato.

Institucionalmente, foi o primeiro presidente a não se relacionar com o Congresso através da mediação partidária. Ele ignorou o processo de eleição para o comando das casas legislativas e não organizou uma base parlamentar. Além disso, ainda em 2019, Bolsonaro rompeu com seu partido, o PSL; e com os governadores do Rio de Janeiro Wilson Witzel, do PSC, e João Dória, do PSDB, ambos eleitos com apoio da onda bolsonarista. Com o judiciário, Bolsonaro jamais desautorizou seus filhos, especialmente Eduardo Bolsonaro, nos ataques que este fez ao STF. Em 2018, Eduardo disse que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF. Em 2019, o deputado federal atacou o supremo por decisões contrárias ao governo. Bolsonaro compartilhou o vídeo do filho em suas redes sociais. Contra o meio ambiente, logo no primeiro dia de governo Bolsonaro retirou da FUNAI a prerrogativa de demarcação das terras indígenas. E o desmatamento na Amazônia bateu recordes já em 2019. Por fim, ainda em maio ele lançou seu ataque contra a ciência, através do ex-ministro Weintraub, que anunciou um corte de verbas acusando as universidades de serem local de “balbúrdia”.

Não é por acaso nem por desespero, portanto, que Bolsonaro convoca seus apoiadores sociais para radicalizar a luta contra o resultado eleitoral, a despeito do que defendem seus sustentáculos no sistema político. Não é que ele não saiba fazer diferente, mas sim que ele não quer. Ele apostará tudo no caos para inviabilizar as eleições.

Voltando à encruzilhada e as eleições como ponto de partida

Derrotar Bolsonaro na disputa presidencial ainda no primeiro turno deve ser prioridade para todas as forças democráticas brasileiras. Sabemos que o atual presidente vai questionar o resultado eleitoral alegando fraude nas urnas eletrônicas.

Bolsonaro não pode alegar que somente o voto presidencial foi fraudado. Se ele for forçado a fazer isso no primeiro turno, terá que questionar a legitimidade não só da vitória de Lula, mas de 27 senadores e 513 deputados federais, além de uma boa parte dos governadores e de milhares de deputados estaduais.

Assim, a recusa do sistema político em aceitar o questionamento à sua legitimidade será ainda mais coesa e capaz de dirigir as demais instituições, como o judiciário. E, em paralelo, também será mais coesa assertiva a mobilização da sociedade em favor da sua própria soberania manifesta nas urnas.

Se eleitoralmente as coordenadas eleitorais já estão dadas, como desmontra a estabilidade aqui analisada, ponto de vista social é fundamental não esperar o resultado das urnas para mobilizar a sociedade em defesa da democracia. Iniciativas como a expressiva Carta em Defesa da Democracia devem ser completadas com organização de atos presenciais e mobilizações de rua. Nesse sentido, o encontro do Movimento Direitos Já em defesa da justiça eleitoral marcado para o dia 01 de agosto e as manifestações de rua convocadas pelas Frentes Povo Sem Medo e Frente Brasil Popular devem ser apoiadas e reforçadas por todas e todos que defendem a democracia.


[1] Cientista político e professor da UFRJ e PPGCS-UFRRJ.

[2] https://observatoriodoconhecimento.org.br/passado-presente-e-futuro-do-brasil-em-jogo-nas-eleicoes-de-2022-por-josue-medeiros-2/

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