Pequeno Guia de Defesa de Cotas Sociais e Raciais

Introdução

No final dos anos 90, o debate sobre as cotas sociais e raciais nas universidade públicas foi um marco na discussão sobre racismo estrutural no Brasil. O país, que nunca tinha rompido seu imaginário colonial nem enfrentado o mito da democracia racial, se deparou com a oportunidade de reconhecer o legado de violações sistêmicas de direitos às populações negra e pobre.

Embora tratada por setores partidários e da imprensa como “polêmica”, a aprovação da política de cotas foi um primeiro passo afirmativo para reparar dívidas históricas. Na prática, as últimas duas décadas de implementação das cotas sociais e raciais ampliou e diversificou o acesso popular à universidade, mudou o perfil do estudante universitário e gerou impactos positivos no conjunto da sociedade brasileira.

Em 2000, a UERJ foi a primeira universidade pública a adotar o sistema de cotas sociais e raciais. Não é mera coincidência, portanto, que uma das principais tentativas de eliminar as cotas universitárias no país parta do deputado Rodrigo Amorim (PSL), da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), que apresentou projeto de lei que pretende abolir as cotas raciais para o ingresso nas instituições estaduais de ensino superior. No entanto, projetos similares já foram apresentados em âmbito federal, como o projeto da deputada federal Dayane Pimentel (PSL-BA), que pretendia revogar a Lei de Cotas de 2012.


O que é a Lei de Cotas?

O objetivo de políticas afirmativas como as cotas é corrigir distorções no acesso ao ensino superior público resultantes de desigualdades estruturais e históricas na sociedade. Um estudo elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostra que, em 2004, apenas 5,6% dos jovens negros brasileiros entre 18 e 24 anos tinham acesso à graduação, em comparação à taxa de 19,2% entre os jovens brancos. A discrepância se mantinha também em termos de renda: naquele mesmo ano, enquanto 43,2% dos jovens de maior renda no país conseguiam entrar na universidade, menos de 1% dos jovens da classe mais baixa acessava o ensino superior.

As cotas sociais e raciais para o acesso ao ensino superior público foram implementadas pela primeira vez pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 2000. Em 2004, a Universidade de Brasília (UnB) se tornou a primeira universidade federal a instituir o mesmo sistema. Em 2012, a lei 12.711, também conhecida como Lei de Cotas, finalmente estabeleceu regras únicas para a adoção de cotas raciais e sociais pelas universidades e instituições federais.


Como as cotas funcionam?

A Lei de Cotas determina que 50% das vagas em universidades e instituições federais de ensino superior sejam reservadas a candidatos que cursaram o ensino médio em instituições públicas de ensino. Dentro desse contingente, a legislação estabelece que pelo menos metade seja destinada a estudantes cujas famílias têm renda per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo; e que uma proporção equivalente à soma das populações preta, parda e indígena do estado em que está localizada a instituição seja reservada para candidatos dessas etnias. Em 2016, a lei 13.409 determinou, ainda, reserva de vagas para pessoas com deficiência, também na mesma proporção que a população do estado de referência.

Além das universidades federais, muitas universidades estaduais também colocam em prática políticas afirmativas de reserva de vagas de acordo com critérios próprios. No Rio de Janeiro, por exemplo, a legislação determina que 20% das vagas em instituições estaduais de ensino superior sejam reservadas a pessoas negras, indígenas e oriundas de territórios quilombolas; 20% sejam reservadas a alunos oriundos da rede pública de ensino; e 5% das vagas sejam reservadas a estudantes com deficiência, e filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão de serviço.

O impacto da Lei de Cotas

Apesar das dificuldades em monitorar a implementação e o impacto da Lei de Cotas, é possível identificar mudanças claras no perfil dos estudantes de ingressam em instituições federais de ensino superior. A tabela abaixo, elaborada por pesquisadores do Inep com base em dados produzidos pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), indica clara diminuição nas distorções entre os percentuais de pessoas pretas, pardas e indígenas na população brasileira e na composição de graduandos de universidades e institutos federais. Embora em 2003 quase 50% da sociedade brasileira se declarasse negra, apenas 34% dos estudantes de graduação em nível federal eram pretos ou pardos. Em 2014, a situação muda drasticamente, e esses percentuais se aproximam.



200320102014
BrancaIfes59,453,945,7
Pop. total52,047,745,5
PardaIfes28,332,137,8
Pop. total41,543,145,1
PretaIfes5,98,79,8
Pop. total5,97,68,6
NegraIfes34,240,847,6
Pop. total47,450,753,6

Fonte: Mello & Senkevics (2018).

O mesmo estudo mostra ampliação no acesso de estudantes de baixa renda às universidades e aos institutos federais. Entre 2010 e 2014, o percentual de graduandos oriundos de famílias com renda bruta de até três salários mínimos subiu de 41% para 51%. No nordeste, o aumento é ainda maior: a proporção sobre de 50% para 64%. A política de cotas tem papel fundamental nessa mudança.


Mitos sobre as cotas

Desde que foi criada, a política de cotas sofreu duros ataques, alimentados pelo preconceito e pela desinformação. Dois dos mitos mais difundidos sobre elas são o de que as cotas tiram vagas das pessoas que não se encaixam nos critérios estabelecidos e o de que elas impactam negativamente na qualidade do ensino superior público. Os dados sobre o ensino superior público desmentem essas duas afirmações.

Segundo o professor e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, desde que as cotas começaram a ser implementadas, o número de vagas da chamada “livre concorrência” aumentou em 15%. Isso significa que, nas últimas duas décadas, o acesso ao ensino superior público foi expandido a todos os perfis de estudantes, independentemente dos critérios para se candidatar às cotas. É um erro, portanto, assumir que as cotas “tiram” vagas daqueles que não se encaixam nos critérios raciais e sociais.

Também não é verdade que alunos cotistas têm rendimento pior do que alunos que não entraram pelo sistema de reserva de vagas. Um estudo da Universidade Estadual de Campinas e da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, que comparou as notas de um milhão de alunos que prestaram o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) no triênio 2012-2014, concluiu não haver diferenças significativas entre o desempenho de estudantes cotistas e não-cotistas. Professores e pesquisadores afirmam também que o bom desempenho e a permanência de alunos oriundos do sistema de cotas na universidade dependem, sobretudo, de suporte financeiro, para que suas condições de estudar sejam equivalentes a de alunos que entram em vagas de livre concorrência.

Para saber mais sobre os mitos criados sobre o sistema de cotas, acesse o guia “Os 10 mitos sobre as cotas”.


Racismo e cotas

As cotas raciais têm como objetivo compensar os graves níveis de desigualdade no acesso a oportunidades criados pelo racismo. No Brasil, a população negra ganha 42% a menos do que a população branca; os negros representam 64% do total de desempregados; 76% das pessoas mais pobres do país são negras. No país campeão em número absoluto de homicídios, um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos; a polícia mata três vezes mais negros do que brancos.

Ainda assim, há quem argumente que cotas raciais não apenas são desnecessárias, como são prejudiciais à sociedade brasileira. Ao justificar seu projeto de lei para abolir as cotas raciais no estado do Rio de Janeiro, o dep. estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ) argumenta que as “cotas raciais sempre dividem negativamente as sociedades onde são implantadas, gerando o ódio racial e o ressentimento”. Argumentos como esse tentam minimizar a existência do racismo e invisibilizam seus impactos cotidianos, sistêmicos e estruturantes na sociedade brasileira.

O racismo no Brasil é tão presente que muitas pessoas acreditam que reservar vagas nas universidades para estudantes de baixa renda é o suficiente para corrigir distorções no acesso de pessoas negras ao ensino superior. Nesse caso, ignora-se que pessoas negras sofrem as consequências do racismo independentemente de sua condição socioeconômica. Em 2016, um experimento realizado pelo Estado do Paraná mostrou que profissionais de Recursos Humanos tendem a imaginar pessoas negras em posições de trabalho menos valorizadas socialmente e de menor remuneração – o que impacta diretamente nas suas condições de empregabilidade e de ascensão profissional.

Garantir reserva de vagas para a população negra nas universidades federais é uma tentativa de compensar parte dos muitos obstáculos enfrentados pelas pessoas negras direta ou indiretamente causados pelo racismo.

Entrar na universidade muda vidas

Para além de conquista pessoal sonhada por tantas famílias em todo o país, a entrada na universidade é oportunidade para o estudante desenvolver a personalidade, expandir conhecimentos, descobrir outras realidades e perspectivas e se preparar para o mercado de trabalho.

As cotas sociais e raciais são ferramentas valiosas para corrigir distorções no acesso ao ensino superior público causadas por desigualdades estruturais na sociedade brasileira, garantindo que um perfil cada vez mais diverso de pessoas possa alcançar esse sonho.

1 comentário

  1. LUZIA FERREIRA DE PAULA em 21 de março de 2021 às 23:05

    Brilhante trabalho

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