O Boletim #8 está no mundo!

Que tal conferir um pouco mais das temáticas abordadas?

No primeiro texto “Não podemos temer o Brasil que saiu das urnas”, o cientista político Josué Medeiros tem por objetivo apresentar a conjuntura política brasileira e o resultado do primeiro turno com o intuito de constituir uma análise que dê conta da realidade complexa e contraditória que é a política brasileira na última década.

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Não podemos temer o Brasil que saiu das urnas
Josué Medeiros[1]

Confira o texto abaixo!

Ao final da noite de 02 de outubro, o clima entre as pessoas progressistas era de decepção com a não vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no 1o turno e medo por conta dos votos de Jair Bolsonaro. Esperava-se, devido às pesquisas e ao sentimento da reta final, uma vitória definitiva do petista, mas ele obteve 57 milhões dos votos válidos (48,43%). E ninguém imaginava que o atual presidente teria 51 milhões de votos válidos (43,20%).

Ao término da apuração, as análises apressadas alimentadas pela lógica angustiante das redes sociais eram de um desespero paralisante diante da força do bolsonarismo. No dia seguinte, circulavam mensagens animadoras destacando as vitórias progressistas. A questão não é “olhar o copo meio cheio ou meio vazio”, mas sim constituir uma análise que dê conta dessa realidade complexa e contraditória que é a política brasileira na última década.

A polarização entre democracia e autoritarismo

Em 2022, este que escreve, em conjunto com as professoras Mayra Goulart e Thaís Aguiar e com os professores Jorge Chaloub e Pedro Lima, criamos o Observatório Político e Eleitoral (OPEL), vinculado à UFRJ e UFRRJ. Trata-se de uma iniciativa que reúne nossos grupos de pesquisa – o Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira (NUDEB), O Laboratório de Partidos e Política Comparada (LAPCOMM) e o Grupo de Pesquisa Democracia e Teoria (GPDET) – para interpretar a política brasileira contemporânea.

O primeiro projeto do OPEL é o Monitoramento Eleitoral de 2022, uma iniciativa de pesquisa, extensão e divulgação científica que conta com três mestrandos, dez graduandos com bolsa de Iniciação Científica e outros vinte que são voluntários. O Monitoramento Eleitoral é vinculado à Universidade da Cidadania (UC), órgão da UFRJ responsável pelo diálogo com os movimentos sociais. E temos parcerias com o Observatório do Conhecimento e com o Le Monde Diplomatique Brasil para a difusão dos boletins do nosso projeto. 

A hipótese que orienta o Monitoramento Eleitoral do OPEL é que a polarização no Brasil não é apenas eleitoral, mas também social e política e se expressa no confronto entre democracia e autoritarismo, com Lula representando a possibilidade de uma reconstrução da democracia brasileira e Bolsonaro mobilizando as forças autoritárias. Mas a polarização não se resume à disputa presidencial e por isso o nosso projeto pesquisou temas que reforçam uma ou outra perspectiva: as candidaturas antirracistas, feministas, da bancada do cocar e dos movimentos sociais como dinâmicas que potencializam a democracia; e a bancada da bala, o papel dos empresários, a força das lideranças evangélicas conservadoras e a desinformação como dimensões que atuam em favor do autoritarismo.

O Brasil que sai das urnas confirma nossa hipótese: a polarização eleitoral, política e social se manifestou nas urnas tanto na presidência quanto no Congresso (e também na maioria das eleições para os governos estaduais, que não serão abordadas nesse texto) e seguirá pautando a política brasileira. É por isso que não devemos ter medo do Brasil que sai das urnas, mas sim compreender essa polarização para intervir a favor da democracia.

A polarização Lula e Bolsonaro

O resultado de Bolsonaro de fato impressionou, sobretudo porque as pesquisas de intenção de voto indicavam um patamar bem abaixo de votos para o atual presidente. O DataFolha de 01 de outubro, apontava Lula com 50% dos votos válidos contra 36% de Bolsonaro; já o IPEC indicava Lula 52% dos votos válidos contra 37% de Bolsonaro. O resultado de Lula ficou dentro da margem de erro das pesquisas, enquanto o de Bolsonaro é muito discrepante. Isso exige de nós uma compreensão maior do que ocorreu nessas eleições.

Em uma análise presa ao próprio evento eleitoral, o que aconteceu foi um voto útil à direita: eleitores antipetistas e conservadores que reprovam o governo Bolsonaro e que provavelmente votariam nele em um 2o turno optaram por adiantar o movimento, principalmente pela rejeição à esquerda em geral e ao ex–presidente Lula em particular.

Essa análise de curto prazo resulta de uma dimensão mais profunda que sempre existiu na sociedade brasileira, a saber, um conservadorismo popular mais ou menos forte a depender da região do país e dos tempos históricos. No século XXI, esse conservadorismo popular nacional se encontrou com um fenômeno internacional do crescimento da extrema direita no Ocidente, algo que Wendy Brown chama de neoliberalismo autoritário. Trata-se de um amálgama de valores liberais como alicerce das trajetórias individuais de superação com uma ideologia fortemente conservadora sobre a sociedade, fundamentalmente baseada na família. As instituições, os direitos, o pluralismo e a democracia, em resumo, o sistema, são inimigos tanto do indivíduo que empreende (via cotas que “premiam” quem não trabalha, via políticas sociais que favorecem vagabundos, via impostos) quanto das famílias, “ameaçadas” pela expansão do protagonismo político e social das mulheres, negros, LGBTQIA+, jovens.

Bolsonaro é a liderança que unifica essas duas dimensões, a eleitoral imediata e a social mais profunda; enquanto o bolsonarismo é o movimento político que as organiza tanto na disputa pelo voto quanto nos conflitos sociais como um todo. Entretanto, por mais força que esse fenômeno político tenha no Brasil, o que ocorreu no pleito de 2022 foi uma derrota de Bolsonaro e do bolsonarismo, e não sua vitória. Pela primeira vez na história um presidente em exercício não lidera a corrida eleitoral. E nunca houve uma virada em eleições deste tipo. Lula teve 25 milhões de votos a mais que Haddad no 1o turno de 2018 e Bolsonaro praticamente não cresceu de um pleito para outro.

Essa derrota bolsonarista se manifesta mesmo na região em que ele reagiu nesta reta final, o sudeste brasileiro: em 2018, Bolsonaro venceu por ampla margem em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espiríto Santo. Agora, foi derrotado em Minas e mesmo saindo vitorioso de São Paulo, perdeu na capital e na região metropolitana, redutos que já foram chamados de “cinturão vermelho” pelas expressivas votações que o PT apresentava. Tudo indica que o conservadorismo popular que sustenta o bolsonarismo é forte mesmo no interior de São Paulo por conta do agronegócio e em todo o Rio de Janeiro,  por conta do peso particular que o debate de segurança pública tem nesse estado. Além disso, Lula manteve a hegemonia sobre a região Nordeste do Brasil e no voto das periferias dos grandes centros urbanos do Sul e Sudeste, onde vivem os eleitores mais pobres que Bolsonaro tentou conquistar com o Auxílio Brasil turbinado.

A polarização no legislativo: renovação bolsonarista e renovação progressista

A polarização se manifesta também no legislativo brasileiro. Isso não significa que não haverá o chamado “Centrão”, bloco de parlamentares mais pragmáticos, sem ideologia definida (são, em geral, conservadores nos costumes e favoráveis à intervenção do Estado na vida das pessoas, sobretudo em políticas sociais) e que costumam aderir a qualquer governo. Mas o que mudou foram os pólos à direita e à esquerda do parlamento.

Pela direita, o que vimos foi uma substituição da direita tradicional pelo bolsonarismo, como fica bem ilustrado pela falência do PSDB, que conquistou apenas 13 deputados federais em 2022. Já o bolsonarismo saiu fortalecido, com diversos candidatos seus figurando entre os mais votados do país e também pela derrota dos principais ex-aliados que se tornaram desafetos de Bolsonaro. O problema é que, assim como em 2018, o bolsonarismo pegou uma legenda emprestada. Assim, mesmo com os votos, seus líderes não controlam as estruturas e os recursos partidários e podem ter que sair sem nada em caso de rupturas, como a que ocorreu entre Bolsonaro e Luciano Bivar, que presidia o PSL.

Pela esquerda, é preciso destacar primeiro que não houve um crescimento do total de parlamentares progressistas. O que ocorreu foi um crescimento das duas federações (PT/PCdoB e PV e PSOL/REDE) que apostaram tudo em Lula e uma diminuição de PSB, que buscou manter alguma independência e do PDT, com outra candidatura. Trata-se de um tamanho expressivo para um bloco que está fora do poder desde o golpe parlamentar de 2016.

O mais importante aqui é a mudança qualitativa da bancada, com duas parlamentares indígenas e outras duas mulheres trans. Na Federação PSOL/REDE, 8 dos 14 parlamentares são mulheres; Na Federação PT/PC do B/PV, são 21 mulheres parlamentares. Há ainda parlamentares ligados aos movimentos sociais como Guilherme Boulos, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e que foi o deputado federal mais votado de São Paulo e da esquerda em todo o Brasil, com um milhão de votos. Por fim, mas não menos importante, é preciso destacar o expressivo resultado do Quilombo dos Parlamentos, iniciativa da Coalizão Negra por Direitos, que elegeu 8 deputados federais do movimento negro. As desigualdades de gênero, raça e a falta de renovação permanecem uma forte marca do legislativo brasileiro, mas o quadro avançou tanto com políticas afirmativas quanto, principalmente, pela auto-organização dos setores que combatem essas desigualdades.

Em suma, também não devemos temer o Brasil representado no Congresso Nacional, cuja polarização será mediada pelo Centrão. O que vai definir se tal mediação vai pender mais para a democracia ou para o autoritarismo, é o resultado final das eleições presidenciais.

Não devemos temer o 2o turno

Serão 28 dias muito duros, de guerra nas ruas e nas redes. A violência política que já foi a tônica do 1o turno deve se intensificar. O tsunami de desinformação nas plataformas digitais também. O risco de uma vitória do autoritarismo é real.

Porém, o caminho para a vitória da democracia é mais curto do que a estrada que leva ao autoritarismo. Lula precisa conquistar 1,6% a mais de votos, cerca de 1,8 milhões de pessoas. Bolsonaro precisa de 8 milhões, ou 6,8%. A conta não é simples porque a abstenção e os votos nulos e brancos mudam, alterando o total de votos válidos. Mas, ainda assim, Lula só precisa ganhar parte dos apoios de quem não votou nele nem em Bolsonaro, enquanto o atual presidente precisa converter eleitores que foram com Lula no 1º turno.

Por tudo isso, não devemos temer o 2º turno. Ao contrário, é hora de mobilizar todas as forças democráticas para garantir que o autoritarismo bolsonarista seja derrotado nas urnas. Ainda que saibamos que o bolsonarismo sobreviverá por muito tempo na sociedade e nas instituições, tirar Bolsonaro da presidência é o primeiro passo para derrotar em definitivo esse autoritarismo e iniciar a reconstrução da democracia brasileira.


[1] Cientista político e professor da UFRJ e PPGCS – UFRRJ.

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