O Boletim #7 está no mundo!

Que tal conferir um pouco mais das temáticas abordadas?

No nono texto “Lei de Cotas nas Universidades: 10 anos de lutas, conquistas e incômodo a elite brasileira” (p.50-56), a graduanda em Ciências Sociais Débora Pinheiro analisa a primeira década da Lei de Cotas para ingresso no ensino superior, através da ótica do quesito racial. 

Confira o texto abaixo!

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Lei de Cotas nas Universidades: 10 anos de lutas, conquistas e incômodo a elite brasileira Débora Cristina P. S. Pinheiro[68]

Resumo O presente texto é parte da pesquisa do Projeto de Monitoramento Eleitoral 2022 e tem por objetivo analisar a primeira década da Lei de Cotas para ingresso no ensino superior, através da ótica do quesito racial. A Lei nº 12.711 entrou em vigor em agosto de 2012, mas enfrentou duras penas antes de se tornar um instrumento importante na luta pela diminuição das desigualdades existentes no país. Para tal estudo, foram utilizadas informações dos sites do Observatório da Branquitude e do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa – gemaa, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e do Supremo Tribunal Federal.

Como nasceu a Lei de Cotas no Brasil

A vontade de acessar o ensino superior em instituições públicas federais é um sonho para a maioria dos brasileiros e brasileiras. Para alguns, esse sonho se tornou possível em virtude da posição social ocupada por suas famílias e pelo privilégio de ter acesso a bons colégios e cursos preparatórios para os exames de admissão. Esta é a realidade de uma pequena parcela da população que vive em uma realidade social onde dar continuidade aos estudos não é apenas uma opção, mas sim uma forma de continuar o legado familiar e ascender socialmente. A outra parte da população, constituída pela maioria, que sempre almejou estar nesse lugar, vive uma realidade onde a maioria que conseguiu dar continuidade aos estudos para concluir o ensino médio o fez nas escolas públicas municipais e estaduais com estruturas muitas vezes aquém do mínimo necessário; ou de escolas particulares de bairros periféricos de baixo custo e de pouca relevância acadêmica. Como esses candidatos oriundos de escolas públicas, que muitas vezes não cumpriam o básico necessário academicamente em sala de aula, poderiam competir com candidatos extremamente bem- preparados, provenientes de escolas particulares tradicionais, seja de formação bilíngue, do ramo religioso ou de instituições públicas de alto gabarito acadêmico?

Foram inúmeros motivos que embasaram as reivindicações movidas por movimentos sociais que ecoaram as vozes da população de baixa renda, negra e indígena que tinham acesso restrito, quase imperceptível, aos cursos de graduação nas instituições de ensino superior. O debate sobre a adoção de cotas foi tão intenso que chegou ao Supremo Tribunal Federal – STF, para o julgamento de sua constitucionalidade, que assim o considerou, por unanimidade. Em seu voto, o então Ministro Joaquim Barbosa, estudioso sobre ações afirmativas, afirmou que:

“A discriminação está tão enraizada na sociedade brasileira que as pessoas nem percebem. Ela se torna normal”. (…) “essas medidas visam combater não somente manifestações flagrantes de discriminação, mas a discriminação de fato”. O ministro disse também que é natural que ações afirmativas “atraiam resistência da parte daqueles que historicamente se beneficiam da discriminação de que são vítimas os grupos minoritários”. (ADPF 186)

Era notório perceber que a participação de uma parcela importante da sociedade não conseguia acessar esse lugar tão privilegiado que é o ensino superior. Lugar esse necessário para a ascensão social do cidadão após o atingimento de uma formação acadêmica mais sólida e específica para as diversas áreas profissionais existentes no país.

As cotas – ações afirmativas – tem como principal finalidade estabelecer critérios para a obtenção de uma reparação histórica em favor da população discriminada seja por sua classe social, seja pela raça, representada fortemente pelos negros e seus descendentes, bem como dos povos originários.

A partir do julgamento no STF, a Lei de Cotas (Lei nº 12.711) foi aprovada e sancionada no ano de 2012 pela Presidenta Dilma Rousseff.

A Lei de Cotas é voltada para uma parcela da população brasileira que atende critérios específicos. As normas determinam que 50% das vagas disponíveis devem ser reservadas para: estudantes de origem educacional da rede pública de ensino. Sendo que 50% dessas vagas devem ser destinadas para estudantes que apresentem os quesitos socioeconômicos a renda per capta inferior a 1,5 salário-mínimo nacional (baixa renda). Somente depois da aplicação desses dois grupos é que o critério racial passa a ser considerado para vagas destinadas a estudantes pretos e pretas, pardos e indígenas, considerando a proporcionalidade dessas populações no Estado da instituição de ensino. As cotas são necessárias para auxiliar, mesmo que minimamente, no combate à desigualdade de condições de acesso à educação.

É importante ressaltar que, em 2016, por meio da Lei nº 13.409, de dezembro de 2016, houve a inclusão da pessoa com deficiência como mais um critério do sistema de cotas.

A mudança

De 2012 até aqui muita coisa mudou nas instituições de ensino de norte a sul do país. Aqueles espaços, antes ocupados majoritariamente por pessoas das classes econômicas mais elevadas da população, cedeu espaço, a partir da aplicação da Lei de Cotas, nos meios de acesso ao ensino superior de ensino para pessoas negras, pardas e indígenas.

As universidades deixaram de ser frequentadas apenas pelas elites e passaram a dividir as salas de aulas com alunos e alunas menos favorecidos economicamente e não brancos. As instituições públicas de ensino passaram a ser, em certa medida, plurais. A diversidade passou a fazer parte do vocabulário dessas instituições.

Diferente do que se pensa, a aplicação das ações afirmativas teve impacto positivo também para aquela parcela da população que já ocupava esses espaços. Com o advento da Lei de Cotas, houve a necessidade de ampliação do número de vagas nos cursos.

No quadro demonstrativo a seguir é possível identificar o aumento da participação de pessoas pretas, pardas e indígenas nos cursos de graduação nas instituições públicas de ensino, comparando o ano de 2012, último ano sem a aplicação da Lei de Cotas e o ano de 2020, último ano de que se tem os dados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep.

No entanto, formadores de opinião, baseados em diferentes estruturas de poder, se posicionaram contrários a existência de cotas por considerarem que a aplicação de uma legislação sobre o tema estabeleceria uma forma de discriminação racial. Parte da imprensa, capitaneados por grandes conglomerados, passaram a chamar a atenção para o que eles consideravam como uma forma contrária de discriminação. Jornais de grande circulação passaram a publicar, com frequência, matérias voltadas ao ataque às políticas de ações afirmativas, insinuando que essas políticas criariam novas injustiças e ainda que não seria possível, no Brasil, a identificação correta de quem é ou não negro, visto que a nação é miscigenada e que a utilização de cotas propiciaria segregação racial. Outro fator apontado como mais importante do que as cotas raciais seria a aplicação de cotas por classe social, visto que a desigualdade causada pela pobreza, sim, poderia ser objeto de combate de desigualdades.

Outro embate contra a Lei de Cotas veio por meio de uma carta redigida por intelectuais sob o título de “Todos têm direitos iguais na República”. Esta alegava que todo movimento a favor das cotas raciais feria o princípio previsto na Constituição de que todos são iguais perante a lei. A partir disso, a utilização de cotas faria com que o racismo se tornasse mais forte na sociedade. Livros negando o racismo no Brasil foram lançados no momento de efervescência em que o tema tramitava por meio de Projetos de Lei (PL), entre 2006 e 2009.

Movimento contrário à  Lei  também foi percebido   nas esferas do poder legislativo federal. Vários Projetos de Leis foram colocados em pauta contra a Lei de Cotas raciais, com um aumento significativo a partir de 2018, quando houve uma maioria de parlamentares eleitos com nítido apelo conservador.

O mais curioso é que, dada as proporções de vagas destinadas às ações afirmativas, o percentual destinado às cotas raciais representa uma pequena parcela do quantitativo de vagas. Mas, considerando o incô modo que essa pequena parcela destinada a pretos, pardos e indígenas causa, dá a falsa impressão de que todo o percentual das cotas destinadas às ações afirmativas são única e exclusivamente raciais.

O futuro

A Lei de Cotas representou um avanço na luta pela diminuição das desigualdades. Com a possibilidade de acesso ao ensino superior de qualidade ofertado pelas instituições educacionais públicas, muitas histórias de vida foram mudadas para melhor por essa nova realidade.

Contudo, o Artigo 7º da Lei de Cotas prevê a revisão do programa de acesso de pessoas pretas, pardas, indígenas e com deficiência, assim como das pessoas que tenham cursado todo o ensino médio em escolas públicas. Com isso, entra em pauta novamente a discussão sobre a legitimidade da aplicação da Lei de Cotas para o ingresso nas universidades públicas.

A Lei de Cotas incomoda aqueles que ocupam lugares privilegiados na sociedade brasileira e que não se conformam com a ocupação por pessoas diferentes dos padrões da elite branca, rica e detentora do capital social, cultural e sobretudo, econômico.

É preciso atenção nesse momento delicado pois o Congresso Nacional será palco desse momento de revisão da Lei de Cotas e conta com um número expressivo de contrários a sua reavaliação e continuidade, podendo ainda sofrer com articulações de parlamentares contrários às cotas.


[68] Graduanda em Ciências Sociais pela UFRJ e colabora no OPEL.

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