O Boletim #1 está no mundo!

Que tal conferir um pouco mais das temáticas abordadas?

No décimo texto “Operadores de segurança nas eleições” (p. 52-57), a graduanda em Ciências Sociais Letícia Queiroz analisa a presença de operadores de segurança – militares das forças armadas, policiais e bombeiros – nas eleições, seja através de suas candidaturas, de seu apoio ou sendo o centro de pautas importantes.

Confira o texto abaixo!

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Operadores de segurança nas eleições
Letícia Queiroz [76]

Resumo Este boletim tem como objetivo monitorar e refletir sobre a presença de operadores de segurança – militares das forças armadas, policiais e bombeiros – nas eleições, seja através de suas candidaturas, de seu apoio ou sendo o centro de pautas importantes.

Nos últimos anos, o Brasil vem vivenciando um crescimento expressivo da participação desses agentes na política. Não se trata simplesmente de cidadãos que ascendem politicamente além de atuarem na segurança pública, mas de cidadãos que o fazem porque atuam na segurança pública, originando uma clara politização das Forças Armadas e das polícias.

O papel desses operadores está ligado, por um lado, a algumas particularidades da história brasileira pós-ditadura militar. Por outro, a certas movimentações políticas iniciadas em 2014 e que tiveram seu auge na campanha e eleição de Bolsonaro em 2018, as quais têm valorizado a classe para além de suas funções profissionais.

Antecedentes

Para compreender como esse fenômeno ganhou espaço no Brasil, é necessário voltar algumas décadas. Os 21 anos de ditadura militar trouxeram consequências permanentes a diversas esferas da vida pública. Isso porque o processo de transição do regime militar foi bastante brando em relação ao julgamento dos crimes cometidos pelos integrantes das forças armadas, vide a Lei da Anistia de 1979, que abrangeu, por exemplo, torturados e torturadores, tendo mais um caráter de conciliação que de punição. Além disso, os militares participaram ativamente da redemocratização, negociando cada passo desse processo e mantendo intactos alguns de seus interesses.

A área da segurança pública é uma das que mais mantém as características do regime. Destaca-se aqui a relação estreita entre as polícias militares e as forças armadas, em que as primeiras são consideradas forças auxiliares das segundas, apesar de estarem submetidas a diferentes governos. Isso faz com que haja um duplo comando das polícias, em parte dos governos, em parte da União. Da mesma forma, as polícias mantêm a mesma estrutura organizacional das forças armadas [77].

Tentativas de mudar esse caráter militarizado das polícias, bem como de criar sistemas nacionais de segurança que orientassem os estados, foram pensadas, mas nunca concretizadas. O governo Lula, por exemplo, criou o Programa Nacional de Segurança com Cidadania, que propunha instaurar um modelo de maior eficiência e modernização nas polícias, além de investir na prevenção ao crime, com todas as diretrizes centralizadas no governo federal. Entretanto, as ações do programa não surtiram efeito, pois após três anos foi sendo extinto através do corte de recursos [78].

Com relação à permanência da herança militar, talvez sua manifestação mais explícita tenha aparecido pela primeira vez em 2014. O Brasil pós-junho de 2013, vivendo o primeiro grande evento que havia estado no centro das discussões e protestos algum tempo antes, reelegia Dilma Rousseff no segundo turno, numa disputa acirrada com Aécio Neves. Começava aí uma grande insatisfação por parte da oposição e do eleitorado que rejeitava o PT, de forma que até mesmo a validade da vitória de Dilma começou a ser questionada. Já naquele ano eram registradas manifestações contra a posse da presidente pedindo intervenção militar, ainda que representando uma minoria de manifestantes e que isso gerasse certas tensões [79]. Pela primeira vez, desde o fim da ditadura militar, essa reivindicação foi feita publicamente em protestos de grande visibilidade nacional.

Dessa forma, 2014 foi crucial para a formação de uma oposição inédita ao governo PT até então. A oposição tradicional representada sobretudo pelo PSDB não deu conta de abarcar os anseios e a rejeição, mais visceral que nunca, por parte desse novo perfil de eleitorado [80]. Esse último começou a encontrar representação em políticos e partidos pouco tradicionais, dentre os quais o maior representante é, até hoje, Bolsonaro. O candidato se firmava numa aparente contradição de ser contra tudo e todos de um sistema político corrompido, ao mesmo tempo que se entendia como conservador e clamava pela ordem e pela disciplina.

O apelo às forças armadas e posteriormente à polícia – é importante mencionar o poder e a visibilidade da Polícia Federal e da Operação Lava Jato por essa época – começaram a crescer cada vez mais, bem como a evocação da memória da ditadura militar. Pelo menos uma vez em em cada um dos anos seguintes os pedidos por intervenção militar se repetiram. Entre 2014 e 2018, ano de eleição de Bolsonaro, esses movimentos não só cresceram em número, como ganharam força com o impeachment de Dilma concretizado em 2016. Paralelamente, nesse intervalo de tempo, Bolsonaro firmava boa parte de sua campanha e da construção de sua credibilidade política no fato de ser um ex-integrante das forças armadas.

Operadores de segurança nas últimas eleições

Alguns dados mostram o reflexo desses movimentos políticos nos resultados eleitorais de 2018: operadores de segurança disputaram as eleições de forma relevante [81]. Entre 2014 e 2018 houve um crescimento de 126,5% de policiais militares candidatos e eleitos. Ainda em 2018, chama a atenção a concentração de integrantes de forças de segurança eleitos por partidos identificados com o espectro ideológico de direita. O PSL, então partido de Bolsonaro, elegeu 1 candidato em 2014, 12 em 2016 e 58 em 2018. Nenhum outro partido chegou perto de eleger metade desse número neste ano.

É necessário chamar a atenção para como o Brasil, se comparado a alguns países, facilita a candidatura desses profissionais. Não é necessário se afastar do cargo ocupado nas Forças Armadas ou nas Polícias Militares para disputar eleições, para aqueles que têm mais de 10 anos de exercício; se forem eleitos, não são desligados, apenas entram para a reserva. Esse é um dado importante para compreender o estreitamento de laços entre esses profissionais e a vida política.

Por fim, com Bolsonaro eleito presidente, vimos também um salto do número de militares ocupando cargos civis [82]. Enquanto no último ano do governo Temer havia 2765, no ano seguinte esse número passou para 3515, até mais do que dobrar em 2020 em relação a 2019, chegando a 6157 militares. Destaca-se também a quantidade de Ministérios chefiados por militares pelo menos até 2020: Defesa, Ciência e Tecnologia, Minas e Energia e Saúde.

Em 2020, dados mostram que, ao mesmo tempo em que esse movimento de candidaturas continuou apresentando número recorde, o número de pessoas ligadas a carreiras militares diminuiu se comparado às eleições municipais anteriores: foram eleitos 623 em 2020 e 693 em 2016, entre vereadores e prefeitos [83] . Outro dado interessante é que a ultradireita perdeu força entre os eleitos, dando lugar à direita tradicional. O PSL agora foi o quinto partido que mais elegeu operadores de segurança, estando no topo PSD, MDB e PP.

Bolsonaro e as Forças Armadas no ano eleitoral

Já agora no primeiro semestre do ano, podemos ver algumas turbulências relacionadas às eleições, protagonizadas por Bolsonaro e pelos militares. Mais do que apenas ocupar cargos em seu governo, em suas falas as forças militares parecem estar estreitamente alinhadas com as condutas e insatisfações do presidente, sendo uma força de suporte.

No fim de abril, o presidente fez voltar à tona a suposta existência de uma sala secreta no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde seria feita a apuração dos votos de forma sigilosa. A informação não procede: a apuração dos votos é aberta, ocorrendo em cada urna eletrônica, e os boletins de urna ficam acessíveis a qualquer cidadão. O que ocorre no TSE é apenas a contagem final dos votos apurados [84].

A especulação consiste, portanto, em um instrumento para desmerecer o processo eleitoral. Vale lembrar que a mudança das urnas eletrônicas para o voto impresso, uma das principais reivindicações de Bolsonaro, gerou muitos debates públicos no último ano, apesar de ter sido mal sucedida. Isso tudo acarretou uma série de questionamentos feitos por militares do Ministério da Defesa ao TSE a respeito das eleições, levantando desconfianças a respeito do processo eleitoral. O TSE, por sua vez, precisou esclarecê-los [85].

Em outra ocasião, no dia do exército, Bolsonaro proferiu a seguinte fala em seu discurso: “As Forças Armadas não dão recados. Elas estão presentes. Elas sabem como proceder. Sabem o que é melhor para o seu povo, o que é melhor para seu país” [86]. Na mesma ocasião, reafirmou a importância de não haver suspeições envolvendo processo eleitoral – afirmação que não seria necessária se a confiança no processo eleitoral fosse estável. Apesar de se esquivar, afirmando que tem “certeza que as eleições do corrente ano seguirão o seu ritmo normal”, Bolsonaro acaba aproximando mais uma vez os militares e o contexto do processo eleitoral, colocando lado a lado problema e solução.

Conclusão

É inegável que os operadores de segurança passaram a ter peso nas disputas eleitorais dos últimos anos. De 2014 até as falas recentes de Bolsonaro, fica clara a ideia de que esses grupos têm mais legitimidade política de gerir perigos, ameaças e crises. Também fica claro como não há nenhum tipo de desconforto em mobilizar forças militares em assuntos políticos, apesar dos 21 anos de ditadura militar que o país viveu.

Em 2020, porém, esse movimento perdeu um pouco seu fôlego, se comparado a 2018: se muitos viram uma receita de sucesso nas candidaturas dessas carreiras, nem tantos conseguiram se eleger. Resta observar, primeiramente, se essa movimentação vai continuar a decair ou se vai se estabilizar nas próximas eleições gerais.

Além do mais, é necessário olhar com atenção o campo da esquerda, bastante apagado no que diz respeito às disputas desses agentes. É possível que, visto o sucesso do foco na segurança pública, os partidos tentem disputar essa área puxando o debate para seu campo ideológico. Ou, em outro cenário, que precise ceder às ideias dos partidos de direita, que se tornaram bastante populares, a fim de conseguir ter mais sucesso nas eleições.


[76]  Letícia Fretheim Queiroz é graduanda em Ciências Sociais pela UFRJ.

[77] Zaverucha, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: Teles, Edson; Safatle, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

[78]  Couto, Maria Isabel; Benetti, Pedro. A viagem redonda do militarismo brasileiro na Nova República. In: Dulci, Chaloub, Perlatto (orgs). A Nova República em crise. Curitiba: Appris, 2020.

[79] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pedido-de-intervencao-militar-racha-passeata-anti-dilma-na-paulista,1593345

[80] Singer, André e Venturi, Gustavo. Sismografia de um terremoto eleitoral. In: Democracia em risco?. São Paulo: Cia das Letras, 2019.

[81] Lima, Renato Sérgio de. Eleições de policiais no Brasil e a força do “partido policial”, 2020. Disponível em: https://pesquisa-eaesp.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/arquivos/re4.pdf

[82] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml

[83] https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/18/apesar-de-recorde-de-candidaturas-numero-de-militares-eleitos-cai-no-pais.ghtml

[84] https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/como-surgiu-a-mentira-bolsonarista-sobre-a-sala-secreta-do-tse/

[85] https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2022/Maio/tse-encaminha-respostas-tecnicas-a-questoes-feitas-pelo-ministerio-da-defesa

[86]https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/04/19/forcas-armadas-nao-dao-recado-elas-estao-presentes-e-sabem-como-proceder-afirma-bolsonaro.ghtml

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