O Boletim #3 está no mundo!

Que tal conferir um pouco mais das temáticas abordadas?

No oitavo texto “Militarização da Funai: Memórias da ditadura e suas ideologias na atualidade” (p. 44-50), a graduanda em Ciências Sociais Raíssa Farias analisa e relata o processo de militarização assíduo da Funai sobre o governo Bolsonaro, traçando de forma breve o impacto causado pelos agentes do Estado na chefia de coordenações regionais da fundação.

Confira o texto abaixo!

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Militarização da Funai: Memórias da ditadura e suas ideologias na atualidade
Raíssa M. A. de Farias [61]

Resumo Este boletim possui o objetivo de analisar e relatar o processo de militarização assíduo da Funai sobre o governo Bolsonaro, traçando de forma breve o impacto causado pelos agentes do Estado na chefia de coordenações regionais da fundação. Como fonte para a pesquisa, foram utilizados o site do Inesc, Estadão, Revista Brasil de Fato, Correio Braziliense, Revista Veja, site oficial do Estado de Minas, site do Governo Federal, Revista Amazônia Real, site da UFMG, BBC News e, por fim, o site oficial do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

A militarização da Funai sob o governo Bolsonaro

No último mês de junho, foi divulgado oficialmente o dossiê “Fundação anti-indígena: um retrato da Funai sobre o governo Bolsonaro”, produzido pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e pela INA, associação que representa indigenistas e servidores da Funai. O documento denuncia a militarização, opressão e a paralisação das ações fundamentais do órgão (Funai) durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), além de condenar as ilegalidades na política de demarcações de terras indígenas[62].

O dossiê expõe o discurso do atual presidente da República que, ainda no período de sua pré-candidatura, declarou que iria dar uma “foiçada” na Funai. Nos primeiros meses de mandato, Bolsonaro fez a tentativa de tornar o órgão submisso ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, mas não obteve sucesso devido à ação do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou a medida provisória. Em meados de 2019, o governo nomeou o delegado da Polícia Federal, Marcelo Augusto Xavier, ao cargo de presidente da Funai[63]. Xavier é considerado pessoa de confiança de Nabhan Garcia, atual Secretário Especial de Assuntos Fundiários (SEAF), presidente nacional da União Democrática Ruralista (UDR), fazendeiro ligado ao agronegócio e totalmente adversário dos direitos indígenas. Hoje, somente 2 das 39 Coordenações Regionais da Funai são comandadas por servidores públicos concursados. O restante está dividido da seguinte forma: 19 são chefiadas por oficiais das Forças Armadas, 3 por policiais militares e 2 por policiais federais, contabilizando 24 coordenações. As demais se encontram com servidores substituídos ou sem relação com a administração pública. Nota-se, também, que a diretoria do órgão é constituída por 2 policiais e 1 militar[64].

Nos nove estados da Amazônia Legal, a proporção de militares na chefia das coordenações é de 58,3%, enquanto nas demais regiões do país a ocupação é de 26,7%. A alta porcentagem de militares na Amazônia Legal reflete interesses territoriais. A área tem sido alvo de exploração inadequada dos recursos naturais, como a extração da madeira, do minério e, sobretudo, a presença do agronegócio[65].

Desde 2019, a Funai aumentou de forma expressiva o número de processos administrativos disciplinares (PAD), amedrontando e intimidando servidores que possuem um posicionamento técnico divergente ao da atual orientação anti-indígena do órgão. Como consequência, muitos tiveram suas competências retiradas, passaram por trocas de funções e deixaram de ter acessos a processos em que estavam envolvidos, além de sofrerem ameaças de exclusão de seus cargos, muitas vezes efetivadas[66].

Segundo o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Dinamam Tuxá, é necessário um perfil adequado para a ocupação dos cargos de alto escalão, de chefia e de postos que estabelecem relações diretas com os povos indígenas, como agentes indigenistas, sociólogos, antropólogos, pessoas que possuem o conhecimento da causa e trabalham em prol da proteção e defesa dos direitos dos povos originários. O conhecimento técnico adequado evita conflitos e violência, tanto física quanto territorial em relação a essa população[67].

Recentemente, os coordenadores nomeados por Xavier promoveram casos de violência e discursos agressivos contra indígenas. Em maio de 2021, o capitão Álvaro Luís de Carvalho Peres, que chefiava a coordenação regional de Mato Grosso, agrediu fisicamente um líder indígena xavante na sede da instituição em Barra do Garças (MT), sendo afastado do cargo por determinação judicial. Outra ocorrência foi registrada no Vale do Javari. O tenente da reserva do Exército Henry Charlles Lima da Silva, que coordena a Funai no Amazonas, afirmou que iria “meter fogo”, juntamente com os indígenas marubo, em povos nativos isolados que haviam entrado em um território[68].

Em vez de atuar como um órgão protetor e provedor dos direitos indígenas, a atual gestão da Funai opera na defesa de interesses de empresários agrícolas e ruralistas que são contrários aos interesses indígenas. Isso é nítido no histórico de violência física e verbal registrado nos últimos anos, inclusive na defesa do Marco Temporal, com a tese de que os indígenas só possuiriam direito àquelas terras dispostas sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal de 1988[69]. Hoje, existem 1.299 terras indígenas constatadas no Brasil, mas somente 470 possuem demarcação ou estão oficializadas, enquanto as outras 829 esperam deliberações do poder público[70].

Os desafios enfrentados durante o governo Bolsonaro remetem ao período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), marcado por agressões, por violências, pelo genocídio e pela falta da efetivação dos direitos indígenas.

Memórias e ideologias da ditadura ontem e hoje

Durante o período ditatorial, diversas etnias indígenas foram submetidas a diferentes níveis de violência, como registrado no “relatório Figueiredo”. Houve assassinatos, prostituição de mulheres indígenas, estupro por parte de agentes militares e grandes proprietários de terra, trabalho escravo, apropriação e desvio de recursos do patrimônio nativo. Além disso, também foram apuradas denúncias referentes a caçadas humanas indígenas, realizadas com metralhadoras e dinamites lançados de aviões pertencentes ao Estado, bem como à contaminação proposital dos povos originários pela varíola e a doações de açúcar contendo estricnina (pesticida usado para eliminar ratos)[71]. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima que ao menos 8,3 mil indígenas foram mortos por ações do regime[72].

Os militares alegavam a necessidade de realizar a “integração” completa do território nacional, ocupando de forma estratégica a região da Amazônia, preenchendo espaços despovoados e, assim, vedando a fronteira com a Venezuela e a Colômbia. Esse projeto quase custou o extermínio de toda comunidade indígena[73]. É importante enfatizar que, assim como hoje, todo esse processo obteve o aval do Estado.

Da ditadura até hoje, os militares sustentam a percepção de que os povos indígenas não cooperam para o bom funcionamento do país. Eles são contrários à autonomia desses povos para administrar e demarcar seus territórios, preconizando a “integração” dos nativos à sociedade “civilizada”[74]. A instrução Normativa nº 9, de abril de 2020, transpõe a visão militar sobre os indígenas, limitando a Funai a uma fundação de certificação territorial para posseiros, agropecuaristas, garimpeiros, grileiros e vendedores de terras indígenas[75].

Projetos herdados do regime militar

Segundo dados publicados em relatório técnico do Instituto Socioambiental (ISA), organização sem fins lucrativos focada em pautas ambientais e indígenas, duas terras habitadas por indígenas isolados encontram-se ameaçadas em razão de projetos de desenvolvimento herdados da ditadura militar. Os projetos são: a pavimentação da rodovia BR-319, localizada no Amazonas, e o resgate do projeto do Linhão do Tucuruí, uma enorme linha de energia que perpassa por dentro de terra indígena, na região de Roraima[76].

Esses territórios são ocupados por grupos que nunca tiveram contato direto com não-indígenas e estão localizados nas terras de Jacareúba-Katawixi (AM) e Pirititi (RR). Dispositivo legal para a proteção temporária de indígenas isolados, as portarias de Restrição de Uso foram objeto de descaso da Funai ao sofrerem atrasos em suas renovações. Isso estimula a ação de invasores e propaga o aumento do desmatamento florestal.

Inaugurada em 1976 no “coração” da Amazônia, a BR-319 tinha como proposta promover a integração nacional, incentivando a migração. A rodovia foi fechada na década de 1980 por falta de manutenção. Desde 2015, há trechos sem pavimentação abertos para a circulação de trânsito. Em junho de 2020, o governo Bolsonaro divulgou um edital para a pavimentação de, aproximadamente, 52 km da rodovia. Apesar de, em 2021, uma liminar obtida pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o edital ter sido derrubada, estudos do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) mostram que a retomada de obras implicaria no aumento do desmatamento em cerca de 1.200%[77].

Outro projeto é o Linhão de Tucuruí, que pretende transmitir energia elétrica e conectar alguns estados do norte ao sistema nacional de energia. Essa linha permeia a terra dos Waimiri-Atroari em 122 km. Foi arquitetada em 1974, no Pará, como projeto do governo militar. O intuito era explorar reservas minerais na Amazônia que, na época, geravam alta demanda de produção de energia elétrica. A segunda etapa de sua formação ocorreu em 2008, quando o Linhão foi leiloado.

Foco de muitas contendas, o Linhão atravessa diversas terras públicas, particulares e reservas. Sua construção requer o desmatamento de áreas para a instalação de torres de energias de até 300 metros. Além disso, há outros impactos ambientais apresentados pelo Ibama, como poluição e outras frentes de desmatamento, tal como o aumento do fluxo de pessoas que, consequentemente, traria doenças a povos isolados. Até 2018, o trecho que passa pelo território indígena Pirititi permanecia com suas obras paralisadas em razão da possibilidade de impactos socioambientais irreversíveis, aguardando autorização do Ibama. Com as orientações do governo Bolsonaro, o Ibama e a Funai (militarizada) aprovaram a construção[78].

Conclusão

Com base nos dados apresentados, verifica-se o processo de militarização explícito da Funai no governo de Jair Bolsonaro que, desde sua pré-candidatura, se mostrou contrário aos direitos indígenas. Pautado pela demanda capitalista, Bolsonaro cumpriu com sua proposta e “foiçou” a Funai, o órgão que deveria defender a causa indígena.

Como consequência da militarização da gestão, os povos nativos perderam espaços em seus territórios, sendo obrigados a dividi-los com agentes que, frequentemente, reproduzem ações violentas e retomam ideologias presentes na ditadura militar. Além disso, ainda hoje, projetos herdados desse regime continuam afetando diretamente a população indígena.

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[61] Graduanda em Ciências Sociais pela UERJ e pesquisadora do OPEL UFRJ.

[62] https://www.inesc.org.br/funai-se-transformou-em-fundacao-anti-indigena-alerta-dossie-sobre-a-atuacao-do-orgao-no-governo-bolsonaro/

[63] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,delegado-da-pf-marcelo-augusto-xavier-e-nomeado-presidente-da-funai,70002928192

[64] https://www.inesc.org.br/funai-se-transformou-em-fundacao-anti-indigena-alerta-dossie-sobre-a-atuacao-do-orgao-no-governo-bolsonaro/

[65] https://www.brasildefato.com.br/2021/02/19/militares-ja-ocupam-quase-60-das-coordenacoes-regionais-da-funai-na-amazonia-legal

[66] https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/06/5015278-desaparecimento-de-dom-e-bruno-expoe-perseguicao-a-servidores-e-indigenas.html

[67] https://www.brasildefato.com.br/2021/02/19/militares-ja-ocupam-quase-60-das-coordenacoes-regionais-da-funai-na-amazonia-legal

[68] https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/o-triste-papel-das-forcas-militares-no-descontrole-da-funai/

[69] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/08/31/interna_politica,1301147/sob-bolsonaro-funai-defende-marco-temporal.shtml

[70] https://www.google.com/url?q=https://cimi.org.br/2021/10/relatorioviolencia2020/&sa=D&source=docs&ust=1658788740663669&usg=AOvVaw22fxnA61fQjR5Bv0ZfbmNy

[71] https://www.google.com/url?q=https://cimi.org.br/2021/10/relatorioviolencia2020/&sa=D&source=docs&ust=1658788740663669&usg=AOvVaw22fxnA61fQjR5Bv0ZfbmNy

[72] https://www.google.com/url?q=https://cimi.org.br/2021/10/relatorioviolencia2020/&sa=D&source=docs&ust=1658788740663669&usg=AOvVaw22fxnA61fQjR5Bv0ZfbmNy

[73] https://www.brasildefato.com.br/2021/02/19/militares-ja-ocupam-quase-60-das-coordenacoes-regionais-da-funai-na-amazonia-legal

[74] https://www.brasildefato.com.br/2021/02/19/militares-ja-ocupam-quase-60-das-coordenacoes-regionais-da-funai-na-amazonia-legal]

[75] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-9-de-16-de-abril-de-2020-253343033

[76] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59563997

[77] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59563997

[78] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59563997

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