É permitido filmar professores em sala de aula sem autorização?
“Professor tem que ensinar e não doutrinar”. Foi com essas palavras que, no final de abril, o presidente Jair Bolsonaro divulgou em sua conta oficial no Twitter um vídeo em que aluna e professora discutem em sala de aula. Em menos de dois minutos de gravação, é possível ver a aluna questionar o posicionamento político-ideológico da professora, que havia feito críticas a apoiadores políticos do governo. “Todas as suas aulas eu vou gravar e expor na internet, tá bom?”, comunica a aluna. Compartilhado pelo presidente, o vídeo rapidamente alcançou mais de 2 milhões de visualizações.
Nos últimos meses, tem sido cada vez mais comuns os casos de alunos que filmam aulas sem conhecimento ou autorização do professor. Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, o ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou ser “direito dos alunos” filmar os professores em sala de aula. Iniciativas como a Escola Sem Partido, que ajudaram a popularizar o mito da “doutrinação ideológica” nas escolas, também incentivam a prática (para saber mais sobre esse e outros mitos sobre educação, clique aqui). No entanto, juristas e especialistas em educação afirmam que filmar professores sem sua autorização com o objetivo de denunciá-los pelo suposto conteúdo “ideológico” de suas aulas não apenas é inconstitucional, como também é antiético e antipedagógico.
O direito de livre manifestação em sala de aula é garantido pelo art. 206 da Constituição Federal de 1988 e reforçado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996. Em ambos os casos, o que se pretende proteger é a liberdade de cátedra, que assegura a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. “Querer impedir ou impor ao professor determinada orientação como parte de uma pedagogia oficial do Estado é inadequado”, conclui Rafael Mafei Rabelo Queiroz, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista ao Nexo Jornal.
A divulgação sem autorização de gravações de professores em sala de aula, seja em áudio ou em vídeo, também fere o direito de imagem. É cláusula pétrea da Constituição Federal a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, “assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, X). O art. 20 do Código Civil de 2002 complementa: “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais”. Havendo comprovado prejuízo material ou moral ao professor – como ser demitido sem justificativa plausível ou sofrer ataques e ofensas nas redes sociais -, o responsável pela gravação e divulgação do vídeo pode ser legalmente imputado.
Por fim, alguns juristas apontam, ainda, que o conteúdo das aulas é protegido por direitos autorais. “A propriedade do professor, o seu modo de ensinar e o conhecimento organizado, fazem parte de uma obra intelectual. Por isso, é preciso respeitar os direitos patrimoniais dos docentes”, diz o constitucionalista Saulo Stefanone Alle, do Peixoto & Cury Advogados, em reportagem do Portal R7. De acordo com essa interpretação, os direitos autorais sobre a aula estariam garantidos pelo art. 5º (XXVII) da Constituição Federal e pela lei 9.610, de 1998. Nesse caso, os alunos poderiam gravar aulas em áudio ou em vídeo apenas para fins privados e de aprendizado, mas não para transmissão, divulgação ou distribuição sem autorização prévia.
Para educadores, o ato de filmar professores em sala de aula sem autorização também é antiético e antipedagógico. Caso um aluno ou sua família se sinta desconfortável com o conteúdo que determinado professor trabalha em sala de aula, o caminho mais produtivo é procurar a própria instituição de ensino, envolvendo-se na elaboração de seu projeto político-pedagógico. “Essas questões têm de ser resolvidas dentro da escola. Não é aceitável fazer exposição dos professores nas redes sociais, acuá-los e fazê-los viver uma experiência ainda mais absurda do que toda a desvalorização do magistério que é o escárnio nas redes sociais. O magistério já vive inúmeras dificuldades, e esse tipo de atitude só alimenta ainda mais o desânimo com o magistério. Isso não é aceitável”, afirma Daniel Cara, membro do Conselho da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Estudos internacionais mostram que a desvalorização do professor é o principal motivo para o baixo desempenho da educação pública brasileira em comparação com outros países. Uma pesquisa recente mostrou, ainda, que metade dos colégios brasileiros sequer tem rede de esgoto e 26% não tem acesso à água encanada. Por todos esses motivos, apenas um em cada cinco brasileiros diz incentivar seus filhos a seguirem a profissão de professor, um dos piores índices do mundo. O ato de gravar professores em sala de aula sem autorização enfraquece ainda mais a confiança de pais e alunos no já precarizado trabalho do educador, colocando-o em situação ainda maior de vulnerabilidade.
Se você é professor e quer obter mais orientações sobre como se proteger desse tipo de situação, acesse o documento do Coletivo Nacional dos Advogados e Servidores Públicos.
Muito útil a matéria, obrigada pela informação precisa e de suma importância para quem busca informações rapidamente.