Deus e o Diabo na Terra do Sol, por José Rebouças da S. Segundo
O Boletim #7 está no mundo!
Que tal conferir um pouco mais das temáticas abordadas?
No sexto texto “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (p.31-36), o graduado e mestrando em em Ciências Sociais José Segundo segue na análise do posicionamento político da população evangélica, conforme sua compreensão de um espectro ideológico-partidário entre esquerda e direita, ao passo em que se articula com noções teológicas do pentecostalismo.
Confira o texto abaixo!
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Deus e o Diabo na Terra do Sol
José Rebouças da S. Segundo[46]
Resumo Esse texto faz parte da pesquisa de monitoramento eleitoral do NUDEB sobre evangélicos e o papel da Igreja Assembleia de Deus no cenário político brasileiro. O objetivo deste boletim é continuar com a análise do posicionamento político da população evangélica, conforme sua compreensão de um espectro ideológico-partidário entre esquerda e direita, ao passo em que se articula com noções teológicas do pentecostalismo. Entender o modo como evangélicos tem se posicionado e atribuído significados religiosos a política partidária nos dá pistas para compreender o contexto político brasileiro atual. Levanto a hipótese de que o cenário de polarização política tem levado essa população a um posicionamento político complexo e que dialoga com questões variadas no cotidiano dos fiéis. Para tanto, retomo conclusões dos boletins anteriores, utilizo a bibliografia especializada sobre o tema, e associo aos relatos da pesquisa etnográfica realizada em uma Igreja Assembleia de Deus em São Luís – MA, iniciada em 2017.
Introdução
Cientistas sociais tem se preocupado com os caminhos que a sociedade brasileira tem tomado. A alta da inflação, a volta do país ao mapa da fome e a má organização do país em gerenciar e lidar com a COVID-19, são alguns exemplos do que têm agravado a crise política no Brasil. Esses pontos convergem em uma preocupação maior ainda: a (re)eleição do atual Presidente Jair M. Bolsonaro que, ao longo de sua carreira política, se mostrou um adepto à ditadura e tortura, e atualmente faz ataques a instituições de Justiça do país, e acusa de fraude o sistema eleitoral caso perca as próximas eleições. Se uma parcela da população tem atribuído esses fatores à incompetência do Governo Federal, outra tem apontado essas questões como secundárias, sintomas de um Estado inflado, de anos de um governo corrupto do Partido dos Trabalhadores, e veem em Bolsonaro uma esperança de mudança.
Apoiadores de um governo mais centrado em projetos políticos sociais, de combate à pobreza, redução do desemprego, fortalecimento da economia nacional têm sido considerados de esquerda por aqueles que adotam a defesa do atual Pr. Bolsonaro, localizados no espectro político ideológico de extrema direita. Evangélicos tem sido uma voz expressiva dessa parcela da população e tem surpreendido ao demonstrar seu alinhamento e posicionamento político nas eleições de 2018. O que não fecha na lógica dessa equação é que evangélicos são prejudicados com ideias difundidas sobre privatização, flexibilização do porte de armas e diminuição do Estado, uma vez que sua população é composta em sua maioria por pessoas de camadas populares, em situação de vulnerabilidade social. Este boletim analisará como essa população evangélica compreende esse espectro político-ideológico e como ela articula teologicamente significados a ele. Para isso, discorro sobre a população evangélica e a teologia neopentecostal e como ela se articula interna e politicamente a partir de dados e relatos de campo da etnografia realizada em São Luís –MA em uma Igreja Assembleia de Deus.
Só Jesus Salva
Igrejas Protestantes, Igrejas Históricas de Missão, Igrejas Reformadas, Igrejas Pentecostais e Igrejas Neopentecostais são segmentos dentro do que se compreende genericamente por Igrejas Evangélicas. Entre elas existem rupturas e continuidades teológicas, em sua variedade de denominações e, por conseguinte, em diferenças no perfil e na quantidade de fiéis.
Atualmente, a maior denominação do bloco evangélico é a Igreja Assembleia de Deus (IAD). Dados do IBGE de 2010 apontam que essa instituição religiosa sozinha detém
12.314.410 em número de fiéis. Comparando esse número ao total de evangélicos pentecostais (25.370.484), ela concentra 48,5% do número de fiéis; e em relação ao número total de evangélicos, ela detém cerca de 29,1%. Isso significa que a IAD é a maior denominação religiosa dentro do segmento evangélico, sendo este, a segunda maior religião do Brasil, perdendo apenas para a Igreja Católica em número de fiéis.
A história da IAD e do pentecostalismo podem explicar sobre como esse crescimento aconteceu. Em 1910 uma dúzia de fiéis da Igreja Batista, em Belém – PA, foram expulsos por seu vozerio encorpado em palavras estranhas, que atrapalhavam outros fiéis a orarem a silêncio. Ali criou-se uma nova doutrina que enfatizava os dons do Espírito Santo expressos pela glossolalia (falar em línguas), pelo improviso nos cultos, e por uma flexibilização maior na abertura de Igrejas. Durante a década de 1950, em São Paulo, houve um movimento de crescimento expressivo pela adesão ao mercado radiofônico e do proselitismo em espaços públicos. Esse crescimento está também associado a migração de nordestinos que passaram a integrar Igrejas Pentecostais como forma de superação das dificuldades materiais e subjetivas.
Desde a chegada das Igrejas Protestantes no Brasil existem relatos sobre a concentração de populações vulneráveis nesses espaços que proporcionavam em alguma medida condições de dignidade a essas pessoas. Clara Mafra47 relata que, na Igreja Católica, pobres cediam seus lugares a pessoas das elites locais, enquanto, em Igrejas Protestantes, essas pessoas tinham lugar para sentar. Outro exemplo é o da Igreja Batista que, durante o Ensino Bíblico alfabetiza uma população de empregadas domésticas, carpinteiros e pedreiros quando incentiva a leitura e a participação do culto. É nas Igrejas Evangélicas onde essa população pode colocar indumentárias socialmente associados a estratos superiores, como ternos e vestidos. Dessa forma, Igrejas Evangélicas, em geral, são um espaço de dignidade e projeção de pessoas de camadas populares que passam pela privação de bens. É nesses espaços que muitas dessas pessoas conseguem acesso à cidadania pelo auxilio mútuo, negada pelo Estado. Por outro lado, esse espaço de projeção e dignidade também tornou-se alvo de ataques de estratos superiores e de religiões menos flexíveis. “Sapateiros inspirados” era um apelido pejorativo para se referir a evangélicos pentecostais, fazendo referência à condição socioeconômica dessas pessoas e aos cultos improvisados.
Com a fundação do neopentecostalismo em 1970, a partir da criação da Igreja Universal do Reino de Deus, no Rio de Janeiro, a Teologia da Prosperidade e Guerra Espiritual são empregados. A primeira baseia-se na melhoria de vida do fiel apostando
em estratégias do empreendedorismo. Exemplos disso são os cultos voltados para a libertação financeira e incentivo do fiel na abertura de um negócio próprio. Já a segunda é conhecida popularmente pelos eventos do “chute na santa”48 e pela intolerância à religiões afro-brasileiras. Para o fiel, a Guerra Santa é percebida cotidianamente, no qual se está em uma guerra constante contra o Diabo. Em suma, os espaços deixam de ter uma conotação laica ou mundana, para ser um espaço de conquista divina.
Nesse sentido, a melhoria de vida, a ascensão social, a conquista de um carro, a comida, o trabalho e todos os espaços ganham uma conotação religiosa e divina para uma população que passa pela privação de bens e pela vulnerabilidade social. Com a política não é diferente. Durante a etnografia, participei de um culto proselitista em uma praça movimentada, o qual encerrou-se com uma oração pela santificação da praça e pelos políticos da cidade e do país para que acabassem a corrupção.
Deus e o Diabo na Terra do Sol
Parte do discurso cristão sobre política partidária pode ser relacionado à Igreja Assembleia de Deus e ao Pr. Silas Malafaia. Silas divulga sua opinião em seu canal da rede social Youtube. Ele reúne vídeos de até 3 minutos com argumentos centrais sobre a corrupção do Partido dos Trabalhadores, ataca instituições de justiça, o “esquerdismo” da imprensa e defende o atual Pr. Jair M. Bolsonaro. No início de cada vídeo, ele saúda o espectador com o slogan “povo abençoado do Brasil”. Dessa forma, ele extrapola barreiras do segmento pentecostal evangélico, dialoga com católicos e espíritas, e congrega aqueles que o seguem no posicionamento antiesquerda, de apoio ao Pr. Bolsonaro.
Relatos da etnografia tornam esse posicionamento mais complexo. Acompanhei as eleições de 2018 para o Governo do Maranhão e observei o posicionamento da Congregação estudada. Apesar de hegemonicamente terem votado no então candidato a Presidência, de extrema direita, Jair Bolsonaro, os interlocutores apoiaram também Flávio Dino, do Partido Comunista do Brasil e abertamente de esquerda. Isso demonstra que, na hora da escolha do candidato, esse voto pode variar conforme a ideologia e que não necessariamente evangélicos vão apoiar um candidato por ser de direita ou de esquerda. Quando questionei um interlocutor sobre seu voto ao Pr. Bolsonaro, ele responde que votou no então candidato pelo apoio a “família tradicional brasileira” e aos valores cristãos, em contraste com a razão de ter votado em Flavio Dino porque Roseana Sarney (então candidata ao Governo) é “macumbeira”. Outra razão para o apoio evangélico ao candidato de esquerda foi a aliança formada com pastores em troca de cargos49 para capelães.
O que é importante notar aqui é que, assim como nota Jaqueline M. Texeira50, a palavra de conexão com a política é “família”. Uma vez que os candidatos estão dispostos a estabelecer um diálogo com Igrejas Evangélicas Pentecostais, o espectro político passa a se tornar mais amplo. Durante o campo, pude presenciar o desabafo de um Pastor convidado que não apoia o atual governo, e que diz ser considerado um traidor entre as Igrejas. Ao mesmo tempo, ele conta que a própria esquerda o rechaça por não concordar com outras pautas, como o casamento homossexual. Spyer51 ; por sua vez, relata a partir da campanha de M. Freixo (PSOL) contra Marcelo Crivella (REPUBLICANOS), que a tradição intelectualista da esquerda tem afastado evangélicos pentecostais ao passo que se aproximou de protestantes históricos. Nesse sentido, evangélicos que discordam do posicionamento político de extrema direita podem se sentir isolados por não serem abarcados pela esquerda.
Durante a etnografia, realizei uma entrevista com um interlocutor que votou no Bolsonaro e justificou que não votaria na esquerda de forma alguma. Ficou em silêncio quando o perguntei o que ele entendia por “esquerda”. Esse silêncio revela que essa compreensão político-ideológica do que é esquerda ou direita muitas vezes pode não fazer sentido para o público, assim como as pautas do atual Pr. Bolsonaro podem não comunicar sobre o segmento evangélico.
Considerações Finais
Este texto recupera as ideias trabalhadas nos outros dois boletins anteriores, um sobre o discurso moral e religioso da política partidária52, e o outro sobre a complexidade do posicionamento político evangélico53. Entender como essa população compreende a política partidária e orienta seus votos pode ser uma chave importante para pensar a crise política e de que forma ela tem sido interpretada por esse público.
A Teologia da Prosperidade e a Guerra Espiritual podem ser chaves ontológicas dentro das Igrejas, mas funcionam de formas muito variadas no cotidiano dos fiéis. Por outro lado, estabelecer contato político com essa população é o que alguns candidatos têm feito, e se aproveitado para nortear posicionamentos do segmento, ao passo em que a “esquerda” parece resistir em se aproximar. Isso pode justificar a razão de evangélicos votarem em candidatos de direita que muitas vezes apoiam pautas que desfavorecem essa população.
A direita sugere diminuição do Estado como forma de resolução aos problemas econômicos, e o armamento da população civil como resposta a problemas de segurança pública. Evangélicos Pentecostais se veem como agentes de sua própria conduta quando essa população já não vê a presença desse Estado, e tem na Igreja seu acesso a dignidade e a projeção quando incentivadas ao empreendedorismo. Nesse sentido, discursos sobre a estrutura social e as desigualdades são superados pela ideia de um mérito próprio e são intensificados por um isolamento político.
[46] Bacharel em Ciências Sociais e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão. Desenvolve pesquisa etnográfica com evangélicos da Igreja Assembleia de Deus e sociabilidades pela cidade de São Luís- MA. Colaborador voluntário do NUDEB.
[47] MAFRA, Clara. Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2001.
[48] “Chute na santa” é o termo utilizado para se referir ao episódio em que o ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Sérgio Von Helder, insultou e chutou uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida, padroeira do Brasil, no dia 12 de outubro de 1995, a qual se dedicava um feriado nacional.
[50] https://www.youtube.com/watch?v=ADriEhBGl10&t=618s
[51] SPYER, Juliano. O Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam. – São Paulo: Geração Editorial, 2020.
[52] https://drive.google.com/file/d/1EXLeMleceqFMWbxZb1IuOJeOT53-onrF/view
[53] https://drive.google.com/file/d/1SHQsP0ePcC0TPQyatYJgECbuPsDP4rmA/view]